Considere o jump scare, um truque muito familiar que raramente falha. Seu poder de manipular e prender a atenção do público é uma arte em si, que quando aperfeiçoada pode ser audaciosa e profundamente perturbadora. Em Mulholland Drive (Cidade dos Sonhos), o diretor David Lynch inverte esse método para criar uma cena tão confiante em sua capacidade de nos aterrorizar que na verdade define exatamente como isso acontecerá.
Onze minutos de filme, entramos no fictício Winkie’s Diner na Sunset Boulevard. Dois homens estão sentados em frente um do outro em uma mesa. Não há nada particularmente notável no interior do restaurante. É quase completamente imperceptível. Porque estamos aqui? Esses homens não apareceram em cenas anteriores. Tudo o que vimos até agora é uma competição de jitterbug e um acidente de carro que traumatizou tanto uma vítima que ela teve que se refugiar em uma casa próxima. Essa cena faz parte dessa história? Como espectadores, ficamos confusos e no limite – mas o mistério em mãos já está fazendo sua mágica.
Dan e Herb (interpretados por Patrick Fischler e Michael Cooke), são visivelmente diferentes em sua linguagem corporal. Dan está ansioso, tenso e possivelmente privado de sono. Por outro lado, Herb é relaxado e confiante. Dan diz a Herb por que eles estão aqui. Ele teve o mesmo sonho sobre este lugar, este mesmo restaurante, em duas ocasiões distintas. Ambos os homens estão presentes nesta visão aparentemente mundana e ambos estão com medo gigantesco.
A causa de seu medo é a presença de um homem atrás do prédio, que Dan pode ver através da parede. Ele diz que nunca quer ver o rosto daquele homem fora de um sonho, mas não chega a descrever as feições de seu algoz. Herb inicialmente faz uma piada, mas fica mais intrigado à medida que a história avança. Após a conclusão, ele decide que ambos devem sair e ver se o homem está realmente lá.
Fica claro que tudo isso não está acontecendo dentro de um sonho, então há poucas chances de que o homem esteja atrás da lanchonete. E, no entanto, tudo nesta cena sugere que é de fato um sonho. A câmera está trêmula, mal parando e vagando descuidadamente para cima e para baixo e atrás dos dois personagens. Apesar do fato de estarmos em um restaurante movimentado no meio do dia, o único som discernível é das vozes dos homens. Não há barulho vindo da cozinha, dos outros clientes ou da rua lá fora. A tensão é palpável e aumenta ainda mais quando eles saem para investigar se algo perverso está ou não à espreita. Talvez este seja o sonho.
Este é um jump scare por excelência – diferente de qualquer outro na história do cinema. Ocorre em plena luz do dia em um ambiente urbano. Lynch transforma este espaço aparentemente seguro em um cenário de pesadelo onde nada é certo e o perigo espreita ao virar da esquina. De sua parte, Fischler transmite mais terror em cinco minutos do que a maioria dos atores consegue ao longo de suas carreiras. Ele está suando e com falta de ar o tempo todo. Quando ele finalmente se aproxima da parte de trás do restaurante, ele se move hesitantemente, rigidamente.
Seu medo do que está por vir combinado com a atmosfera da cena criam uma peça de cinema verdadeiramente hipnotizante que funciona apesar do clímax já ter sido estragado momentos antes. Quase não importa se o homem está realmente atrás de Winkie ou não. A sensação de pavor que esta cena engendra é tão inebriante que persevera pelas duas horas e meia seguintes.
O trabalho de câmera principalmente no lado de fora do Winkie é fenomenal, a câmera sempre se mantém um passo a frente, guiando os personagens, e por outro lado nos forçando a enfrentar o terror que aguarda na parte de trás do restaurante. A cada passo que é dado nosso medo se materializa, e a dúvida se torna certeza, que a coisa vai aparecer. A revelação é particularmente assustsdora não só pela forma que foi construída até aqui, mas tambem a câmera faz questão de preencher o frame todo para maximizar a surpresa e evitar que consigamos distinguir o que estamos vendo, note como a criatura não é pega totalmente pela câmera quando aparece novamente para se esconder atrás da parede, com o piscar dos olhos ela sumiu, do frame e da nossa memória, e nós somos deixados sozinhos em choque, não pela sua aparência mais pelo simples fato de que ele existe.
Em Mulholland Drive, nos dizem para esperar uma coisa, mas escolher acreditar em outra coisa. Esse fio percorre todo o filme, desde a cena da audição até o Club Silencio, onde tudo já foi descrito em detalhes ainda no momento em que estamos totalmente absortos. A maneira como Lynch constrói cada cena do filme é extraordinária, mas é Winkie’s Diner que mostra o diretor em seu melhor descarado e manipulador. Como espectadores, estamos condicionados a antecipar o que vem a seguir, mas quando pensamos que temos as respostas, Lynch muda as perguntas e ainda obtém resultados.
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